Educação sexual: em vez de proibir, que tal educar?

Priscila Cardoso/ agosto 5, 2021/ Conteúdo/ 0 comments

educação sexual / eu escolhi me informar

A campanha evangélica “Eu escolhi esperar”, lançada em 2011, nos indica alguns caminhos para repensarmos a forma como a sexualidade é abordada em nossa sociedade e como uma educação sexual adequada, com perspectivas de igualdade de gênero, poderiam ser efetivas ao ponto de não ser necessário medidas tão extremas ou intervenção religiosa.

O que é a campanha “Eu escolhi esperar”?

Em 2011, o casal de pastores Nelson Junior e Angela Cristina, criaram uma campanha cristã chamada “Eu escolhi esperar”, que cresceu nacionalmente com as redes sociais, tendo adeptos de várias denominações cristãs e evangélicas. Segundo o casal, a proposta dessa campanha é a “preservação sexual e integridade emocional”, com mensagem de “santidade e pureza baseada nas sagradas escrituras” (Site oficial).

Segundo a juventude adepta ao movimento, é a escolha certa para suas vidas, por poderem ter relacionamentos emocionalmente saudáveis, e serem respeitades nas relações. As meninas são as que se manifestam sobre o respeito ao corpo e questões familiares, como Jaqueline, que afirma que a pregação de pureza e santidade é para “gerar filhos de Deus saudáveis e, consequentemente, futuras famílias saudáveis.” (Entrevista de 2016). Uma outra entrevistada, Cássia, diz que já terminou um namoro porque seu parceiro “queria só se satisfazer” (sic) e que sofre preconceito entre colegas que não apoiam sua decisão. O próprio pastor afirma que os homens rejeitam mais essa campanha.

O movimento tem site próprio, cursos, mentorias, e-Book, loja e seguem firmes no propósito de associar vida sexual/emocional e relacionamentos saudáveis aos princípios cristãos sobre os corpos.

A perspectiva da sociedade sobre gênero e sexualidade

Os argumentos usados pelo movimento não estão incorretos. Sabemos que os corpos femininos não são respeitados. Somos alvo de violência sexual, desigualdade de gênero em diversos aspectos e, apesar de todos os avanços jurídicos – como a lei 14.188/2021, que recentemente alterou o código penal para acrescentar o “sinal vermelho contra a violência doméstica”, acrescentando a violência psicológica contra a mulher como parte da lei – ainda estamos vulneráveis à violência, simplesmente por ser mulher.

O machismo é estrutural e a desigualdade de gênero está na memória social e jurídica. Segundo Lia Zanotta, especialista em direitos das mulheres,

“era escrito em lei que as mulheres não valiam o mesmo que os homens […] Castigar fisicamente era admitido na nossa legislação”

E não podemos nos esquecer do quanto a cultura religiosa judaico-cristã legitima esse discurso, ao afirmar que a mulher deve ser submissa ao homem, além do incentivo de alguns líderes religiosos para mulheres que sofrem violência doméstica a não denunciarem seus maridos e ainda buscarem ser uma esposa sábia, para trazê-lo para a igreja.

Na educação informal – a informação recebida pela família, cuidadores de forma natural, não planejada – percebemos a forma como as meninas são educadas diferente dos meninos desde a infância, e como essa diferença se evidencia ao entrarem na puberdade. Meninos são orientados sobre desejo e poder sexual, enquanto meninas são orientadas sobre menstruação e fertilidade. O prazer para eles, a reprodução para elas. (UNESCO, 2004).

Com a escassez de informação adequada sobre sexualidade e o silenciamento por parte de pais, cuidadores e educadores, até mesmo por despreparo, a juventude busca informações sobre o tema entre colegas, amigues, pela mídia e em filmes pornográficos, onde aprendem sobre corpos e performances irreais.

Assim, além do sexismo estrutural, seguimos com um déficit na educação sobre os corpos, além da desigualdade de gênero que é refletida nas relações afetivas e sexuais. Desde cedo, mulheres não são respeitadas nas relações, seja na questão emocional e responsabilidade afetiva, seja na parte física e sexual.

Com essa reflexão, entendemos que o problema não está no liberalismo sexual, no feminismo ou na falta de informação sobre as escrituras sagradas cristãs, como afirmam os adeptos do movimento “Eu escolhi esperar” e outres religiosos, mas na estrutura sexista da nossa sociedade, que trata os corpos de mulheres como mercadoria.

PL 813/2019 “Eu escolhi esperar”

Usando o mesmo nome do movimento cristão, o vereador Rinaldo Digilio (PSL) apresentou esse projeto de lei, que propõe acrescentar ao calendário de eventos de São Paulo, a “Semana Escolhi Esperar” que, segundo ele, vai trabalhar prevenção e conscientização sobre gravidez precoce, que deve ser conduzida pelas secretarias de Saúde e Educação.

A campanha não é bem vista entre coletivos feministas e movimentos sociais, pois é uma nítida referência ao movimento cristão com o mesmo nome, que se utiliza da abstinência sexual como método contraceptivo entre a juventude, por motivos religiosos. Sem contar que é um projeto que se adequa às falas da ministra da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que defende a exclusão da educação sexual nas escolas.

Problemáticas do projeto de lei

Há evidências científicas de que movimentos de abstinência sexual não são eficazes na prevenção de gravidez precoce ou início de atividade sexual entre a juventude (UNESCO, 2019). Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, há falhas científicas e éticas na chamada “abstinence only”.

Segundo Albertina Duarte Takiuti, Coordenadora do Programa Saúde do Adolescente da Secretaria da Saúde do Estado de SP, em entrevista ao Jornal da USP no Ar, programas que focam em comportamento não dão certo.

“Eu me somo a todas as vozes que, desde 2011, mostram que Estados dos EUA, que propuseram ou sugeriram abstinência, tiveram um aumento da gravidez e de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs)”, afirma Albertina.

Em 2017, a Sociedade para a Saúde e Medicina do Adolescente (SAHM, na sigla em inglês) publicou um posicionamento, afirmando que as políticas de abstinence only têm sérias falhas éticas e científicas, e afirma “a abstinência de relações sexuais pode ser uma escolha saudável para os adolescentes”, mas que estes jovens “devem decidir por eles mesmos quando estão prontos para começar a fazer sexo”: “A escolha do adolescente pela abstinência sexual não deve nunca ser imposta”.

Em Dezembro de 2019 a Sociedade Americana para Ginecologia Pediátrica e do Adolescente (Naspag) publicou uma nota de posicionamento conjunta sobre a gravidez na adolescência, endossando a crítica sobre as políticas de abstinência apresentadas pela SAHM.

O projeto não leva em consideração pessoas LGBTQIA+, inclusive as assexuais, que muitas vezes, por não compreenderem sua orientação sexual, podem aderir ao movimento sem um olhar crítico. A campanha é voltada apenas para juventude cisgênera e heterossexual, apagando quem não se encaixa nessa norma.

Também não abrange aquelus que já iniciaram as atividades sexuais ou mesmo se tornaram mães e pais, ainda adolescentes. E não leva em consideração crianças e adolescentes que são vítimas de violência sexual.

Além disso, não respeita a autonomia que todes têm direito.

E para finalizar, a base do movimento é em valores religiosos, que devem ser escolhidos individualmente e não prescrito ao coletivo, afinal, vivemos numa sociedade teoricamente laica.

eu escolhi esperar

Vamos de dados?

  • O número de recém-nascidos filhes de jovens entre 10 e 19 anos diminuiu nos últimos anos. Mas ainda assim, em 2020, de 147.084 bebês nascides vives, 13.533 nasceram de jovens entre 15 e 19 anos e 415 crianças são filhes de meninas com menos de 15 anos.
  • Uma em cada quatro meninas faltam às aulas escolares por não terem acesso a absorvente no período menstrual.
  • 800 estupros foram registrados em São Paulo até Abril de 2021, sendo que 75% foram de crianças e adolescentes, na maioria meninas negras da periferia.
  • O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), baseado em registros do Ministério da Saúde entre 2011 e 2014, apontou que 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados, amigos ou conhecidos das vítimas.

Educação integral em sexualidade como solução para os mesmos problemas, sem a intervenção religiosa

Proibir ou colocar um valor moral baseado em conceitos religiosos, sem informar, não é a solução adequada. Algumas das propostas da educação sexual, que vão de encontro às queixas de adeptos ao movimento:

Evitar a violência sexual: Crianças e adolescentes sem informação adequada sobre sexualidade são alvos fáceis de violência sexual, além de iniciarem a vida sexual precocemente pois muitos não têm ideia de que as coisas que fazem com seus corpos ou que outras pessoas fazem com o corpo delas é sexual.

Questão de autonomia: A educação integral em sexualidade se propõe a promover o direto a uma pessoa de escolher quando e com quem ter qualquer tipo de relação íntima, além da responsabilidade sobre suas escolhas e o respeito pelas escolhas das outras pessoas, como por exemplo, a abstinência sexual.

Igualdade de gênero: educação sexual é compreender as questões de gênero, as desigualdades sociais por classe, raça, orientação sexual, gênero, pessoas com deficiência e soropositivas, e buscar o respeito à diversidade. Além da melhor compreensão sobre a própria identidade e o entendimento em não reproduzir relações de poder..

A partir das questões apontadas, as pessoas terão seus corpos e limites respeitados, além de relacionamentos afetivos e/ou sexuais saudáveis.

É melhor prescrever ou educar?

Falar sobre um movimento que é legitimado por um livro sagrado e, assim, pelo próprio Deus, coloca um peso moral sobre essa escolha. Como questionar “a vontade de Deus”? Como ir contra o que os líderes religiosos apontam como pecado? A religião é sistema de sentido e “o discurso religioso é entendido como verdade sagrada”, como aponta a pesquisadora Sandra Duarte de Souza em seu livro sobre gênero e religião no contexto familiar.

Porém essas prescrições, disfarçadas de escolha, tiram a autonomia da juventude, principalmente corpos de meninas cis e de crianças e adolescentes LGBTQIA+, que ficam debaixo das normas sexistas e desiguais da sociedade.

A ideia de poder escolher esperar é própria de uma educação sexual que ensina ferramentas para que a juventude tenha autonomia e responsabilidade sobre o próprio corpo, sem a necessidade de legitimar com discurso de pureza e santificação ou com a ameaça de pecado, culpa e consequências espirituais, próprias das instruções evangélicas.

Portanto, te convido a refletir comigo:

A intenção é a de educar e oferecer escolha mesmo ou mais uma forma de proibir, controlar e culpabilizar os nossos corpos através do discurso religioso?

O que é melhor: proibir ou educar?

Eu escolhi educar e informar.

Priscila Cardoso, Sexóloga, Educadora sexual e Teóloga


Fonte:

ABRAMOVAY, Miriam, CASTRO, Mary Garcia e SILVA, Lorena Bernadete da. Juventude e Sexualidade. Brasília: UNESCO Brasil, 2004.

SOUZA, Sandra Duarte de, LEMOS, Carolina Teles. A Casa, as mulheres e a igreja. São Paulo: Fonte Editorial, 2009

UNESCO. Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade – Uma abordagem baseada em evidências. Brasília: UNESCO Brasil, 2019.

Conselho Regional de Psicologia SP

Site Eu escolhi esperar

Repórter Unesp

Geledés

Câmara Municipal de São Paulo – Semana Eu escolhi esperar

Câmara Municipal de São Paulo – Relatório PL 813/2019

Jornal da USP no ar

BBC

SINTRAJUD – Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de São Paulo

PSTU

PPS Advogadas – Pires, Pratti & Soares @ppsadvogadas

Agência AIDS

Brasil de Fato

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About Priscila Cardoso

Feminista, bissexual, não-monogâmica. Graduada em Teologia e pós graduada em Sexologia. Trabalho como Sexóloga, na área de Educação sexual. Sexualidade é sobre ter autonomia e responsabilidade sobre o próprio corpo, entender a própria identidade, gostos, valores e ter afeto por si mesme, e a partir desse amor próprio, se relacionar de forma consciente. Como Sexóloga, te ensino a (re)encontrar o prazer ao se reconectar consigo mesme.

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